De Povos Indígenas no Brasil

“Tem uma traíra que é a mãe do igarapé... Por isso eu sempre digo para essas mocinhas: respeitem!”

por Raimunda Tapajós

Eu já cacei bastante nesse campo quando era solteira. Sozinha, de cachorro e espingarda, e nunca eu vi nada, nada, nada. Só um búfalo que eu vi me meteu medo e uns gritos de cachorro embaixo da terra. Mas aquilo pra mim não foi bem medo; eu sei o que era. Eu sei que a gente tem uns sinais e que a gente não pode atentar muito. Essas coisas mostram que há um impedimento e que a gente não pode duvidar das coisas. Eu tenho muito respeito pelos campos, pelos igarapés. Tem coisas nesses igarapés que as pessoas contam e é preciso ver. Tem uma traíra que é a mãe do igarapé. Muitas vezes, as mocinhas de hoje não sabem o que é resguardo, e estão pegando o delas aí. Pessoas que não têm respeito, pessoas que não se entendem de nada. Mas nós sabemos, nós já tivemos mãe também, nós temos que ter respeito por todos. O que acontece é que moça tem um tempo, vem, e ela fica passando em cima do igarapé. Pra ela pouco acontece, mas pra alguém que vem atrás... Pega uma olhada, uma dor de cabeça, pega um espanto, ou mesmo fica doido na hora e faz coisas; é perigoso. A coisa transforma em ruim e dá muito trabalho. Por isso eu sempre digo para essas mocinhas: respeitem, não faz uma coisa dessas. Tem um espírito que fica aí até no toco dessa passagem. Na metade da noite, alguém pode ir ver que tem alguma coisa lá. Mas isso não é coisa de meter medo, a não ser que falte ao respeito. Nem adianta passar correndo: ele tem olho e está enxergando.

Dos tempos no Arapiuns

por Leandro Mahalem de Lima, antropólogo e doutorando pelo PPGAS/USP

Em suas reflexões, Seu Osmarino e Dona Raimunda, habitantes da TI Cobra Grande, às margens de um igarapé próximo ao encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas, no centro-oeste do Pará (Santarém/PA), chamam a atenção para as muitas consequências dos novos tempos. As coisas hoje se apresentam a eles como um mundo de estranha- mento, tomado pela cegueira e pelo desrespeito. Nada, entretanto, passa despercebido pelas mães dos igarapés, das matas e dos campos. Espíritos do fundo, capazes de se manifestar na superfície na forma de qualquer “bicho”, são os verdadeiros donos dos domínios que, cada vez mais, estão a emitir seus sinais de contrariedade com a intensidade das novas mudanças e desarranjos, provocados pelas ações desenfreadas daqueles que não “entendem” do respeito às mães que cuidam de tudo o que há.

Em poucas décadas, desde os tempos de sua juven- tude, os campos foram cercados para pastagens. Desmatadas, pisoteadas e repletas de fezes de animal, as nascentes do igarapé viraram bebedouro para o gado. As matas e a caça foram reduzidas pela pressão madeireira. Os peixes escassearam pela demanda por compra dos grandes barcos. A estrada não asfaltada (PA-257), que liga Santarém às minas de bauxita de Juruti, cresceu e avança sobre suas áreas de ocupação. Caminhões, caminhonetes e ônibus circulam cada vez mais ao lado de suas casas.

Fazem barulho, liberam fumaças. Traficantes circulam em busca de rotas alternativas para o transporte de drogas e bens roubados, aliciando a população local. A circulação pelos rios e trilhas é cada vez mais restrita e cheia de impedimentos. Novas doen- ças proliferam, as antigas já pouco são nomeadas. As jovens mulheres parecem já não levar a sério os resguardos. Os velhos sacacas, com sua habilidade de interpretação e cura, se foram, deixando apenas algo de seu saber e força para os curandeiros.

Seu Osmarino e Dona Raimunda, fundadores da aldeia do Tapajós do Garimpo, conhecedores dos remédios da mata, temem profundamente os desar- ranjos, que, cada vez mais se aproximam de suas casas. Não participam ativamente do movimento indígena, embora tenham esperança no esforço dos jovens para que o Estado os reconheça como povos indígenas, e lhes reconheça direitos tradicionais. Melancólicos, gostam do recolhimento em sua casa ventilada de palhas de curuá, cipó-titica e esteios de sapopira, às margens do igarapé Sepetú, gerador de um dos braços do lago Arimum, que desemboca no Arapiuns. Ali se mantêm de suas roças, quintais e trilhas de coleta; próximos de seus filhos e netos, à beira do igarapé onde estão acostumados a monito- rar os sinais dos desarranjos.

Depoimentos colhidos em 8 agosto de 2008, na TI Cobra Grande, por Leandro Mahalem Lima