"A violência contra os indígenas é o legado que a gente traz nas veias"
Kerexu Yxapyry, liderança da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), fala sobre os recorrentes conflitos em seu território e evoca a importância das lutas traçadas por seus antepassados para que os Guarani continuem resistindo no país.
Eu moro numa terra de conflito, que é Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. A gente traz de herança dos nossos antepassados as histórias do nosso território, por onde a gente transita. É muito forte. Eu sou a primeira neta, então me criei praticamente até os 15 anos de idade andando junto com o meu avô e com a minha avó. E era essa a educação e as histórias que a gente sempre ouviu. Toda essa história da mobilidade, do território por onde se transitava, aonde tinha acontecido mais conflitos, mais assassinatos dos povos e a violência, como sempre. Tem essa questão da violência contra os indígenas, principalmente contra as mulheres. É o legado que a gente traz nas veias.
Eu tenho, como um grande exemplo para mim, a minha avó, ela sempre foi guerreira. Ela está viva até hoje, tem 80 anos e é uma líder espiritual. Antes de a gente ter esse contato, não existia a figura do cacique. Existia o papel da liderança, que liderava todo um povo, mas era liderado por Nhanderu [Nosso pai]… Era ele que ditava as regras. As regras de vida: do respeito, do amor pelo ser vivo. Hoje, a gente tem que viver na resistência para poder sobreviver.
Nesses últimos anos, como eu assumi esse papel de cacica na Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), fiquei por 4 anos liderando como cacica e chegou num ponto em que eu comecei a refletir a tamanha violência que vem para cima das lideranças indígenas como um todo, mas, em particular, a questão da mulher. Porque a mulher pensa com o coração, ela não pensa com a cabeça. Se eu vou lutar, eu vou lutar para melhorar a vida da minha família, do meu povo, a alimentação, a saúde, o bem estar dos meus netos que estão por vir ainda, que é uma forma de se sacrificar também. Eu estou me entregando a um sacrifício, assim como na regra do povo Mbya existe a caça, que ela não é caçada somente por caçar, mas existe todo um ritual feito em cima disso. A planta que é tirada para fazer as casas, para fazer a lenha… Também não é tirada de qualquer forma. Quando Nhanderu deixou para nós, ele deixou isso.
A minha vida está sendo muito bem abençoada pelo meu povo, mas eu sei qual é o meu destino: eu saio fora daquela regra de viver normalmente como eu fui nascida para poder ajudar o meu povo. Nesses últimos tempos então, eu comecei a pensar em tudo isso porque eu já não vivo como uma indígena deveria viver… Lá dentro da mata, com agricultura, produzindo seu próprio alimento, ter aquela vida de tranquilidade com a família.
Na vida cotidiana da nossa própria aldeia tem o papel da mulher de cuidar da família, fazer alimento... E o papel de mãe também. Muitas vezes eu me cobrei porque eu tive que deixar meus filhos, sair de uma hora para a outra fazer essa luta, sem ter aquele tempo para ficar cuidando dos filhos porque a gente está pensando num povo. Pensando num povo bem maior. E isso também é aproveitado nesses momentos pelos políticos que são contrários à questão das demarcações de terra e também ajuda nessa questão do extermínio dos povos indígenas. Porque a gente vem vivendo um momento de tortura não só da bala.
Seria muito menos dolorido chegar alguém e dar um tiro no peito e você acabar ali porque você não ia sentir a dor de ver o que está acontecendo hoje no meio do nosso povo. Mas é mais torturador que isso. Porque além de vir essa questão política de ameaça, o povo todo é ameaçado, os meus pais são ameaçados, meus filhos são ameaçados, tudo é ameaçado. Teve um tempo em que eu chegava e falava: “se for para acontecer, que me matem primeiro, mas não fiquem fazendo essa tortura psicológica de estar ameaçando as demais pessoas”. Mas era bem isso, bem nessa forma que chega essa violência de tortura, de pegar e talvez matar alguém que tá na tua frente, que é da tua família, e deixar você para sentir a dor… aquela dor para você dizer assim: “não, eu largo mão, eu vou desistir”.
Eu converso com minha filha, eu falo que a luta do povo indígena não para por aqui. Tem outras formas de luta, assim como existem outras formas de extermínio dos povos indígenas. Começa pela catequização, depois vem pelos colonizadores, os bandeirantes vêm… Todo esse massacre indígena. E daí chega a escola também que, na minha visão, é uma forma de exterminar os povos indígenas. Mas tem muita coisa que a gente pode se apoderar e usar como ferramenta, como um veículo de defesa da nossa cultura, deixar esse legado que a gente sempre recebeu dos nossos antepassados, sempre olhar para isso. Porque tem ainda um líder espiritual lá, em Santa Catarina, ele sempre fala para nós: “os ossos dos nossos antepassados são luzes para nós”. São luzes que, independente de onde você for, o ano que achar, o tempo que achar, ele vai ter toda uma história ali registrada. Então, que eu possa ser essa luz que minha filha, meus filhos possam estar no futuro sendo iluminados por essa luz e levar esse legado adiante.
Hoje a gente vem sofrendo também com essa questão política. A maioria da bancada ruralista é da região Sul: Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, que é essa região do agronegócio. E são essas bancadas que estão se levantando em Brasília. E que estão tomando toda essa força e vindo para cima de nós, indígenas, e nós estamos lá, borbulhando no meio desse furacão.
Morro dos Cavalos é uma terra já declarada pelo ministro da Justiça. Agora a gente está no processo final, que é a homologação da terra. Já faz quase dez anos que a gente está nesse processo da homologação e, nesse tempo, foi o maior conflito que aconteceu lá na nossa terra. Porque o governador do estado de Santa Catarina é anti-indígena, tem a maior discriminação pelos povos indígenas. Tem uma bancada ruralista que vem para Brasília e tenta colocar um marco temporal... Que tem que comprovar que tinha índio em 1988, quando foi criada a Constituição. Lá no Morro dos Cavalos, o governador de Santa Catarina entra com a ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a anulação da portaria declaratória porque não tinha índio lá, no Morro dos Cavalos, em 1988. Naquele espaço ali, onde a gente está ocupando hoje. E aí vem para o STF pedindo essa anulação da portaria declaratória.
A gente sabe que antes da chegada do europeu, antes do nosso Brasil ter sido saqueado e roubado, era um território extenso e a gente fazia as nossas Tekoá onde era melhor para o povo viver. E foram esses melhores lugares que foram tomados de nós. Então, se a gente explicar isso para um político, hoje está tudo dividido por países, estados, municípios e lugares.
Fora as outras violências que aconteceram no Morro dos Cavalos, de perseguição. Eu mesma passei por várias, como eu falei, além dessa questão psicológica, dessa tortura, de ameaça... Minha casa, várias vezes de madrugada, acordei com tiroteio em volta da minha casa. Cortaram todas as mangueiras de água que abastecem a aldeia, já recebi recado que iam tacar fogo na minha casa, que iam pegar meu filho, meu pai e fazer algo se eu não parasse de lutar pelo Morro dos Cavalos. Então isso é uma violência que cada vez mais vem aumentando e calando essa questão da luta pela terra.
O depoimento acima foi registrado em 2017 durante o 14º Acampamento Terra Livre, em Brasília (DF), por Victoria Franco e Luiza Calagian.